18.4.06

Papos de Anjo

O vigia era pontual e implacável. Dez horas da noite, em ponto. O gerador emitia um rugido maior ainda e era desligado. Acabava a luz. Acendiam-se lampiões a gás, velas, lamparinas. Na vila em que não havia mais do que 50 casas, muitos iam dormir. Não tinha televisão e o rádio só pegava em ondas curtas. Estou na região da campanha em Santa Vitória do Palmar. No meio do caminho entre Pelotas e o Chuí, na fronteira com o Uruguai. Saudades? Pode ser. Lembranças? Muitas, imensas, inesquecíveis. Ainda que eu fosse bem criança. E recordo bem minha mãe começando o trabalho ainda com luz e terminando pela madrugada, a luz de lampião. Num tacho imenso (quando se é criança tudo parece imenso!) lá está ela na minha memória batendo as gemas com uma colher de pau igualmente imensa. A massa tinha que ficar esbranquiçada para que os Papos de Anjo ficassem no ponto correto. Eu e minhas irmãs até queríamos atrapalhar, ops... ajudar. Com medo de que a massa desandasse, minha mãe negava. E continuava a bater, a bater... Os ombros doíam, as mãos ficavam com calos...Mas todos nós lá em casa adorávamos aquele doce. Os ovos vinham do quintal. De galinhas bem tratadas, alimentadas a milho e arroz (morávamos numa granja de arroz). Não havia batedeira que desse jeito de suportar primeiro a baixa tensão do gerador. E, depois, quando a energia fosse desligada, havia de ser de que maneira? E ficávamos ali, vendo a agonia do bate...bate...bate. Até que minha mãe se desse por satisfeita. Aí começava outra etapa. Passar a massa para as forminhas que tinham que ser enchidas só pela metade. No forno, a massa crescia e se transformava num bolinho quase sem gosto e sem graça. Chegava então nosso momento de ajudar. Com um palito, furávamos várias vezes os bolinhos ainda quentes. E assim, quentinhos, furados, meio sem gosto e bem sem graça, iam eles para a calda de açúcar. A gente nem dormia direito esperando pela hora do almoço do dia seguinte. Na geladeira, em compoteiras, o bolinho absorve a calda. Ganha vida, ganha gosto. Depois que saímos da campanha, não lembro mais de ver minha mãe fazendo os Papos de Anjo. E até já comi muitos pelo mundo afora. Nenhum tinha o gosto igual. Nenhum carregava, além de gemas e açúcar, o doce sabor da infância. Receita aqui : Toque Blanche

11.4.06

Discos, Livros, Amigos.

Início da rua XV de Novembro, Pelotas/RS. É engraçado como a idade ajuda a gente a se dar conta de algumas coisas que foram importantes na vida e que passaram quase desapercebidas. Discos, livros, amigos circulam pelas mãos, mentes e corações e só muito mais tarde nós conseguimos dimensionar a importância de todos na formação da personalidade, caráter e cultura. Revistas, por exemplo. Sempre gostei de colecionar. Minha paciência para fascículos sempre me surpreendeu. Esperar semana por semana para saber um pouco mais. Cinema, futebol, história da arte, pensadores, pintores, filósofos... Acho que só consegui juntar toda a biblioteca que tenho, graças ao Zé. É o funcionário de uma banca de revista de Pelotas. A Corrida do Ouro, nome da banca, ficava na Rua XV de Novembro quase em frente a TV Tuiuti(mais tarde, RBS Pelotas) e era nela que eu me abastecia e deixava boa parte do salário todo santo mês. Tinha conta lá. E, o mais importante de tudo, foi a relação de confiança que se estabeleceu entre o vendedor e o comprador. Quando não tinha dinheiro, pendurava. Quando chegava novidade que Zé acreditava que iria me interessar, guardava. E geralmente acertava. Mas para mim, o mais importante, é que Zé nunca deixou faltar um único exemplar. Nunca precisou pedir um número aos distribuidores porque tivesse esquecido de guardar. Nunca mais encontrei um "revisteiro" igual. Hoje a banca mudou de lugar. Zé trabalha na galeria Zabaletta. Toda vez que vou a Pelotas, passo lá e fico lembrando de todas as conversas, de todos os fascículos que ele guardou ao longo dos 5 anos que trabalhei na TV Tuiuti. Mas tenho a impressão de que eu nunca disse a Zé o quanto ele ajudou na minha formação, no nível de informação que eu fui adquirindo. A cultura, o entendimento estético, o conceito de quanto a informação é importante... Da próxima vez que for a Pelotas, vou dizer tudo isso pessoalmente. Obrigado, Zé.