17.2.06

Infância na Fronteira II

Ida, volta amanhã? Os trocadilhos infâmes, agressivos de um grupo de meninos apenas escondia a paixão que todos sentíamos por aquela menina tão simples, tão quieta, tão linda. Todos os dias, cedo, nosso futebol, nossas brincadeiras antes da aula, debaixo da figueira que protegia a escola do vento, acabavam no exato momento em que víamos Ida chegando. Vinha a pé nos dias quentes. Vinha cavalo nos dias de chuva. Sempre vencendo uma distância de dois quilometros, o que também a tornava um pouco nossa heroína. A memória nos trai, as vezes. Mas tanto quanto me lembro, era baixa (mas todos éramos!), cheinha e tinha as bochechas sempre rosadas. Ou por causa do frio ou por causa do calor. Na mesma sala, quatro fileiras de alunos. Primeira a quarta série. Dois quadros, duas professoras. E todos com a mesma curiosidade sobre aquela menina de grandes olhos castanhos. Entrava muda e saia calada das aulas. Só ouvíamos a sua voz quando as professoras Eva ou Fanny faziam perguntas. Não havia sorrisos, não havia tentativa de ser simpática com ninguém. Ignorava a todos. Não havia desprezo. Apenas não permitia a aproximação de ninguém. Várias vezes tentamos subornar nossas mestras com maçãs - que chegavam fresquinhas e enroladas em papel-seda azul da Argentina - e com pedaços de bolo da nossa merenda...tudo para que elas tentassem decifrar o mistério de Ida. A resposta era sempre a mesma : "aqui só interessam as notas e o comportamento, nada mais". Um dia, fui mais ousado. Minha maçã foi parar na mesa de Ida. Cheguei bem cedo. E debaixo do papel-seda azul, um bilhetinho curto. Com minha letrinha muída, que tentei disfarçar de alguma maneira, tive coragem de escrever apenas : "você é linda". Quando entramos na sala, a maçã chamou a atenção de todo mundo. Meu coração parecia que iria saltar pela boca. Ida chegou, sentou, olhou e pegou a maçã e o bilhetinho. Guardou tudo na bolsa feita com saco de farinha de trigo que no sul chamamos de mala de garupa. No dia seguinte, veio a sua doce vingança. Quando entrou na sala de aula, foi direto para a mesa da professora. Quem ainda não havia sentado, parou. Quem já estava na sala, levantou. Eu queria um buraco...ou ter coragem de sair da aula. Ida abriu a bolsa, tirou um pacote bem amarradinho, botou em cima da mesa e, pela primeira e última vez, falou sem que fosse perguntada: "Minha mãe fez um bolo para quem deixou a maçã para mim ontem". E, pela primeira vez, lembro de ter visto um sorriso no rosto de Ida. Até hoje não sei se deboche ou alegria. Ninguém se manifestou. Minha ousadia tinha sido enfrentada com ousadia maior. E ser ridicularizado na sala de aula era tudo que eu não queria. Ninguém prestou atenção na aula. A manhã passou com todos esperando para conhecer o corajoso que iria buscar o presente. A professora Fanny passou a manhã olhando para mim. Sabia, pelo jeito que me olhava, que tinha sido eu o autor da ousadia do dia anterior. Mas, sábia mestra!, não me expôs ao ridículo. No fim da manhã, chamou Ida num canto, conversou por dois minutos e anunciou que o bolo iria ser repartido entre todos. Juro que fiquei com a impressão de que meu pedaço foi o maior de todos e que até Ida se deu conta da divisão desproporcional. O resto do ano letivo passou sem mais nenhuma surpresa. Ida voltou a sua reclusão e eu acabei esquecendo a ousadia infantil. No ano seguinte, Ida não apareceu. Foi estudar em Santa Vitória e nunca mais vi aquela menina que povoou os meus sonhos durante muito tempo. E o mistério de Ida nunca foi desfeito.

Infância na Fronteira I

Inverno. Chovia. E muito. O barulho da chuva caindo era multiplicado nas folhas de zinco que cobriam os barracos dos operários que chegavam para preparar o plantio do arroz. Frio e chuva. Quase ninguém se atrevia a sair e enfrentar a noite quase na fronteira com o Uruguai. Só Cuíca teve coragem. Recebeu um bilhetinho para um encontro sob a marquise do armazém. Não reconheceu a letra desenhada, mas taura criado na campanha, não podia deixar que o frio e a chuva testassem sua fama de conquistador. Correu. Ficou encharcado. E esperou. Meia hora depois, nada de a chuva diminuir e nada da dona do bilhete chegar. Já se preparava para correr em direção ao acampamento quando sentiu o perfume. Tomou um susto. Mulher casada. Mulher desejada. Encrenca das grandes. Mulher de chefe. Nem quis conversa. Deu um boa-noite seco e virou as costas. Foi agarrado pela camisa molhada e, agora, rasgada. Pediu licença. Sentiu o abraço. Tentou sair. Ouviu o grito. "Me larga, me larga", gritou a dona. E ele de braços abertos, tentando mostrar que não era dele o abraço. Ficou esperando a confusão se armar. Ninguém apareceu. O barulho da chuva nos telhados de zinco abafou os ruídos e a ansiedade de uma dona faminta. Abafou os ruídos quase animais de um amor mal feito, apressado. O dia nem tinha amanhecido quando o taura deixou suas pegadas na lama. Fugiu. Se ficasse, corria o risco de atender a um novo chamado. Na noite seguinte, nem o vento impediu que se ouvisse o grito desesperado de uma mulher. Cuíca já estava longe.

Banhado do Taim


Posted by Hello A infãncia passou sem surpresas. Além da escola, as lembranças mais fortes que ficaram foram os dias em que ia para o campo, a cavalo, buscar ou levar o gado. Na garupa da sela, levava sempre duas latas de leite Ninho, grandes, cheias de nata do leite gordo que bebíamos todos os dias. Na volta da lida no campo, a nata tinha se transformado em manteiga. Sem nenhum esforço. No início do verão, a gurizada tinha a missão de recolher o rebanho de ovelhas, pegar uma por uma e jogar um pó que protegia os olhos dos animais da grama queimada pelo sol. Em casa, tínhamos galinhas, gansos, marrecos e coelhos. Como os cachorros eram proibidos de ficarem soltos na fazenda, a criação de coelho de todas as cores, tamnhos e pelagens, era grande. Havia porquinhos-da-índia, também. E uma horta imensa. Como esquecer do sabor dos rabanetes colhidos na hora? Mas talvez a lembrança que ma marque mais, seja a estrada que ligava Rio Grande a Santa Vitória do Palmar. A passagem sobre o Banhado do Taim, na foto acima, era um sacrifício no inverno. A chuva deixava a estrada intransitável. E se não houvesse sempre um trator a postos, ninguém atravessava aqueles 18 quilometros. Eu não lembro do perigo. Lembro dos animais. Capivaras, jacarés, ta-hãs, maçaricos, garças... uma infinidade de aves. Enquanto os adultos sofriam, as crianças ficávamos procurando os animais que se encondiam no meio dos juncos. Depois que o banhado ficava para trás, a estrada perdia a graça. Mas ainda assim levávamos quase 6 horas para vencer 170 quilometros. Mas certamente a distãncia de Ida é muito maior a esta altura da vida.

Armas


Posted by Hello O amarelo era a única cor que eu conseguia enxergar. O arroz estava pronto para ser colhido. Era dezembro. O calor fazia subir uma névoa tão quente que dava a falsa impressão de que as lavouras estavam pegando fogo. E os olhos do menino só conseguiam ver os bandos de marrecas e marrecões que cruzavam o céu. Em pouco tempo, muitas estariam mortas. Já me arrependera de ter convencido meu pai a deixar que acompanhasse a caça. A curiosidade infantil e o senso inato do macho predador que me fizeram chegar até ali, morriam cada vez que as espingardas calibre 12 ou 20, disparavam a carga de chumbinhos devastadora. Não bastasse a artilharia pesada que todos carregavam, ainda atraiam as aves com apitos que imitavam o canto das marrecas piadoras. Meu pai tinha uma regra básica: só se mata o que se vai comer. E até que tentava seguir o seu princípio ecológico, ainda que naquele tempo ecologia significasse a mesma coisa que o cumprimento da regra. O problema, para o dono da lavoura, é que as aves aquáticas migratórias todo ano faziam uma escala na região para se alimentar e seguir viagem para a Argentina. E se aproveitavam das lagoas e dos arrozais para obedecer o instinto animal. À devastação que elas faziam, os caçadores retribuíam com pólvora e chumbo. Felizmente, a caça foi regulamentada pelo Ibama em áreas específicas e em número reduzido a cada temporada. A carne, escura, era gostosa. Ainda que as vezes acabássemos mordendo chumbinhos, cada fim de caçada, era uma festa. De tanto insistir, tinha dado um tiro para o céu. Não acertei coisa alguma. Mas quase fui nocauteado pelo coice da arma. Fui o primeiro a atirar. E em seguida, o ar ficou coberto pelo cheiro de pólvora queimada. E, agora, vendo a desproporção daquela guerra em que uma parte quer apenas voar e se alimentar e a outra que queria impedir que a natureza seguisse seu curso, fiquei me sentindo ainda menor. - Eu disse que caça é coisa para homem. Criança tem que brincar, jogar bola. A insistência foi tua. Cala boca e aprende. Meu pai era sutil como um trator. - Aprender o quê? Como se mata? Eu não conseguia conter o choro. Eram tantas marrecas e marrecões dependurados nas árvores próximas, que o cheiro do sangue embrulhava o estômago. - Não, cortou meu pai. Aprende que um homem armado pode atirar em qualquer coisa. A maioria tem cérebro (colhão?) para matar só os bichos. Outros nem tanto. O diabo é que a gente nunca consegue imaginar o alguém armado pode fazer. Aquele foi meu primeiro e único tiro.