
O vigia era pontual e implacável.
Dez horas da noite, em ponto.
O gerador emitia um rugido maior ainda e era desligado.
Acabava a luz. Acendiam-se lampiões a gás, velas, lamparinas.
Na vila em que não havia mais do que 50 casas, muitos iam dormir.
Não tinha televisão e o rádio só pegava em ondas curtas.
Estou na região da campanha em Santa Vitória do Palmar.
No meio do caminho entre Pelotas e o Chuí, na fronteira com o Uruguai.
Saudades? Pode ser.
Lembranças? Muitas, imensas, inesquecíveis. Ainda que eu fosse bem criança.
E recordo bem minha mãe começando o trabalho ainda com luz e terminando pela madrugada, a luz de lampião.
Num tacho imenso (quando se é criança tudo parece imenso!) lá está ela na minha memória batendo as gemas com uma colher de pau igualmente imensa. A massa tinha que ficar esbranquiçada para que os
Papos de Anjo ficassem no ponto correto.
Eu e minhas irmãs até queríamos atrapalhar, ops... ajudar.
Com medo de que a massa desandasse, minha mãe negava. E continuava a bater, a bater...
Os ombros doíam, as mãos ficavam com calos...Mas todos nós lá em casa adorávamos aquele doce.
Os ovos vinham do quintal. De galinhas bem tratadas, alimentadas a milho e arroz (morávamos numa granja de arroz).
Não havia batedeira que desse jeito de suportar primeiro a baixa tensão do gerador. E, depois, quando a energia fosse desligada, havia de ser de que maneira?
E ficávamos ali, vendo a agonia do bate...bate...bate. Até que minha mãe se desse por satisfeita.
Aí começava outra etapa.
Passar a massa para as forminhas que tinham que ser enchidas só pela metade.
No forno, a massa crescia e se transformava num bolinho quase sem gosto e sem graça.
Chegava então nosso momento de ajudar.
Com um palito, furávamos várias vezes os bolinhos ainda quentes. E assim, quentinhos, furados, meio sem gosto e bem sem graça, iam eles para a calda de açúcar.
A gente nem dormia direito esperando pela hora do almoço do dia seguinte.
Na geladeira, em compoteiras, o bolinho absorve a calda.
Ganha vida, ganha gosto.
Depois que saímos da campanha, não lembro mais de ver minha mãe fazendo os Papos de Anjo.
E até já comi muitos pelo mundo afora.
Nenhum tinha o gosto igual.
Nenhum carregava, além de gemas e açúcar, o doce sabor da infância.
Receita aqui :
Toque Blanche