17.2.06
Infância na Fronteira II
Infância na Fronteira I
Banhado do Taim

A infãncia passou sem surpresas.
Além da escola, as lembranças mais fortes que ficaram foram os dias em que ia para o campo, a cavalo, buscar ou levar o gado. Na garupa da sela, levava sempre duas latas de leite Ninho, grandes, cheias de nata do leite gordo que bebíamos todos os dias. Na volta da lida no campo, a nata tinha se transformado em manteiga. Sem nenhum esforço.
No início do verão, a gurizada tinha a missão de recolher o rebanho de ovelhas, pegar uma por uma e jogar um pó que protegia os olhos dos animais da grama queimada pelo sol.
Em casa, tínhamos galinhas, gansos, marrecos e coelhos. Como os cachorros eram proibidos de ficarem soltos na fazenda, a criação de coelho de todas as cores, tamnhos e pelagens, era grande. Havia porquinhos-da-índia, também. E uma horta imensa. Como esquecer do sabor dos rabanetes colhidos na hora?
Mas talvez a lembrança que ma marque mais, seja a estrada que ligava Rio Grande a Santa Vitória do Palmar. A passagem sobre o Banhado do Taim, na foto acima, era um sacrifício no inverno. A chuva deixava a estrada intransitável. E se não houvesse sempre um trator a postos, ninguém atravessava aqueles 18 quilometros. Eu não lembro do perigo. Lembro dos animais. Capivaras, jacarés, ta-hãs, maçaricos, garças... uma infinidade de aves. Enquanto os adultos sofriam, as crianças ficávamos procurando os animais que se encondiam no meio dos juncos. Depois que o banhado ficava para trás, a estrada perdia a graça. Mas ainda assim levávamos quase 6 horas para vencer 170 quilometros. Mas certamente a distãncia de Ida é muito maior a esta altura da vida.
Armas

O amarelo era a única cor que eu conseguia enxergar.
O arroz estava pronto para ser colhido.
Era dezembro. O calor fazia subir uma névoa tão quente que dava a falsa impressão de que as lavouras estavam pegando fogo.
E os olhos do menino só conseguiam ver os bandos de marrecas e marrecões que cruzavam o céu.
Em pouco tempo, muitas estariam mortas. Já me arrependera de ter convencido meu pai a deixar que acompanhasse a caça. A curiosidade infantil e o senso inato do macho predador que me fizeram chegar até ali, morriam cada vez que as espingardas calibre 12 ou 20, disparavam a carga de chumbinhos devastadora.
Não bastasse a artilharia pesada que todos carregavam, ainda atraiam as aves com apitos que imitavam o canto das marrecas piadoras.
Meu pai tinha uma regra básica: só se mata o que se vai comer. E até que tentava seguir o seu princípio ecológico, ainda que naquele tempo ecologia significasse a mesma coisa que o cumprimento da regra. O problema, para o dono da lavoura, é que as aves aquáticas migratórias todo ano faziam uma escala na região para se alimentar e seguir viagem para a Argentina. E se aproveitavam das lagoas e dos arrozais para obedecer o instinto animal. À devastação que elas faziam, os caçadores retribuíam com pólvora e chumbo. Felizmente, a caça foi regulamentada pelo Ibama em áreas específicas e em número reduzido a cada temporada.
A carne, escura, era gostosa. Ainda que as vezes acabássemos mordendo chumbinhos, cada fim de caçada, era uma festa.
De tanto insistir, tinha dado um tiro para o céu. Não acertei coisa alguma. Mas quase fui nocauteado pelo coice da arma.
Fui o primeiro a atirar. E em seguida, o ar ficou coberto pelo cheiro de pólvora queimada.
E, agora, vendo a desproporção daquela guerra em que uma parte quer apenas voar e se alimentar e a outra que queria impedir que a natureza seguisse seu curso, fiquei me sentindo ainda menor.
- Eu disse que caça é coisa para homem. Criança tem que brincar, jogar bola. A insistência foi tua. Cala boca e aprende. Meu pai era sutil como um trator.
- Aprender o quê? Como se mata?
Eu não conseguia conter o choro. Eram tantas marrecas e marrecões dependurados nas árvores próximas, que o cheiro do sangue embrulhava o estômago.
- Não, cortou meu pai. Aprende que um homem armado pode atirar em qualquer coisa. A maioria tem cérebro (colhão?) para matar só os bichos. Outros nem tanto. O diabo é que a gente nunca consegue imaginar o alguém armado pode fazer.
Aquele foi meu primeiro e único tiro.
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